No dia 22, a Grécia vai aprovar finalmente o alargamento das uniões civis aos casais do mesmo sexo, o que tem motivado declarações extremistas de alguns responsáveis da Igreja Ortodoxa, instituição com laços muito fortes sobre o Estado.
Artigo de Ricardo Cabral Fernandes, em Salónica.
Na passada semana foi apresentada uma proposta de lei no parlamento que define a atribuição de direitos iguais aos casais do mesmo sexo relativamente às uniões de facto, depois da demissão do governo no verão ter impedido o debate e aprovação da lei que o primeiro governo do Syriza tinha proposto. Para aprovar a lei no parlamento a 22 de dezembro, o Syriza terá de contar com o apoio de partidos da oposição. Os parceiros da coligação de governo – Gregos Independentes/ANEL – já manifestaram o sentido de voto contrário à proposta.
O Bispo de Kalavryta, Ambrosios, veio acender a polémica com fortíssimas declarações contra os homossexuais e os parlamentares que afirmaram publicamente que irão votar a favor da proposta de lei no dia 22 de Dezembro. Usando uma linguagem muito ofensiva, Ambrosios apelou no seu blog para os gregos cuspirem tanto nos homossexuais como nos parlamentares que estão a favor da lei: “Cuspam neles! Desprezem-nos! Votem contra eles! Eles não são humanos! Eles são aberrações da natureza! Mental e espiritualmente doentes! Estão mentalmente loucos…não hesitem! Sempre que os vejam, cuspam neles! Não os deixem em paz! Eles são perigosos!”. O mesmo Ambrosios tinha defendido em 2012 que os neonazis da Aurora Dourada eram uma esperança para o povo grego.
Church of Greece Reacts to Bill Giving Civil Partnership Rights to Same-Sex Couples https://t.co/c2RIxFUh0q #Greece
— Greek Reporter (@GreekReporter) December 10, 2015
O memorando de explicação da proposta de lei enfatiza a necessidade do reconhecimento oficial aos casais do mesmo sexo, baseando-se nos princípios da igualdade entre cidadãos e o respeito pela diversidade, tal como a Constituição grega e a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos estipulam. É de relembrar que a Grécia já foi no passado censurada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por as suas leis discriminarem o reconhecimento dos casais do mesmo sexo.
A Grécia é também dos últimos países na Europa onde não existe qualquer base legal para o reconhecimento oficial de relações entre pessoas do mesmos sexo, causando problemas legais e financeiros na vida de milhares de cidadãos gregos.
A Igreja Ortodoxa decidiu manter a sua posição de denunciar formas alternativas de famílias por acreditar que são uma desvalorização do sagrado conceito de família, além de também afirmar que é uma desvalorização do próprio conceito do valor da vida, transformando a sagrada instituição do casamento numa simples transacção civil.
Estado e Igreja Ortodoxa: história de uma relação íntima
A importância e influência da Igreja Ortodoxa remonta aos séculos posteriores à queda do Império Bizantino, em 1453. Durante séculos, os gregos estiveram sob domínio de príncipes e sultões estrangeiros que praticavam outras religiões, o que transformou a Igreja Ortodoxa no principal, se não no único, sustentáculo da identidade grega contra outras religiões, principalmente a muçulmana e a católica, e impedindo-o de ser assimilado por outros povos. Desde este período que a identidade do povo grego se encontra fortemente relacionada com a religião ortodoxa.
A Revolução Grega de 1821, que pretendia e almejou a independência nacional, veio fortalecer esta trajectória com a criação do Estado nacional grego e com o fortalecimento dos laços entre este e a Igreja Ortodoxa. Para além do seu carácter de autodeterminação nacional, a guerra pela independência também assumiu um carácter religioso, uma guerra entre cristãos ortodoxos e muçulmanos, os otomanos, o que fortaleceu ainda mais o papel da instituição religiosa. À medida que o Estado grego foi sendo construído, as suas relações com a Igreja estreitaram-se, com o primeiro a utilizar a segunda como instrumento de desenvolvimento nacional atribuindo à sua religião o estatuto de religião nacional, proibindo o proselitismo dentro das fronteiras nacionais, e dando aos padres ortodoxos o estatuto de funcionários públicos. Estes privilégios são incompatíveis com alguns dos princípios da definição liberal de Estado. Esta trajectória histórica entre Estado e Igreja Ortodoxa transformou a segunda numa das principais instituições de bloqueio de reformas progressistas e laicas.
Mas se a Igreja Ortodoxa assume a função religiosa como a principal, não é de somenos relembrar que também assumiu posições políticas claras ao longo do século XX. Durante a I Guerra Mundial e na questão se a Grécia deveria ou não entrar no conflito, apoiou o Rei contra o então primeiro-ministro Venizelos, tendo excomungado o segundo e evitado a entrada do país na guerra. Aquando da Guerra Civil grega (1946-49), apoiou ideologicamente a luta contra o Partido Comunista Grego (KKE) e, por, fim apoiou a Ditadura dos Coronéis (1967-74) com um discurso nacionalista e religioso com o slogan “A Grécia dos Cristãos Gregos”.
Quando o metapoleftesi, período pós-1974 até hoje, se iniciou e o PASOK chegou pela primeira vez ao poder em 1981, pareceu que a relação entre o Estado e a Igreja Ortodoxa iria sofrer alterações em consequência da frase proferida pelo então primeiro-ministro Andreas Papandreou: “A separação basear-se-á em assuntos administrativos e não nos elos da Igreja com a nação”. No entanto, se na teoria a Igreja e o Estado estão de certa forma separados administrativamente, na prática a primeira instituição é parte integrante do segundo. Com a entrada da Grécia na então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, e as respectivas directivas de cariz predominantemente liberal impostas ao Estado grego, despoletaram-se alguns conflitos entre si e a Igreja Ortodoxa.
Um desses conflitos foi a eliminação da identificação religiosa dos cartões de identidade gregos, em 2000, sob a governação de Kostas Simitis, então primeiro-ministro e líder do PASOK, e que se arrastou até 2005 com a decisão final do Tribunal de Justiça da União Europeia contra um processo encetado por advogados e teólogos gregos. Este conflito fez com que a Igreja mobilizasse fortemente a sociedade grega contra Simitis. No entanto, existem certos assuntos em que a Igreja assume uma posição contrária mas em que não se pronuncia publicamente, como acontece com a questão do aborto.