O perito independente das Nações Unidas Juan Pablo Bohoslavsky publicou recentemente o seu relatório sobre a situação da Grécia e faz o retrato de um país afogado pela dívida e pela austeridade.
Artigo de Eric Toussaint, porta-voz do CADTM Internacional e coordenador técnico da Comissão para a Auditoria e Verdade sobre a Dívida Grega.
Juan Pablo Bohoslavsky, perito independente das Nações Unidas, com o propósito de divulgar os efeitos da dívida sobre o exercício dos direitos humanos, publicou e apresentou um relatório sobre a situação na Grécia. O CADTM recomenda a sua leitura, acessível através da seguinte ligação: A/HRC/31/60/Add.2 (Relatório do perito independente sobre os efeitos da dívida externa e de outras obrigações financeiras internacionais dos Estados em termos de direitos humanos, em particular económicos, sociais e culturais – Missão à Grécia, 29 de fevereiro de 2016).
A tabela sobre a evolução da despesa pública entre 2009 e 2013 é esclarecedora. A despesa caiu de 128 mil milhões de euros para 108 mil milhões de euros. As despesas relativas ao sector da saúde caíram 42 %, as despesas referentes à luta contra a exclusão social desceram 81 %, os gastos com subsídios de desemprego baixaram 30 %, numa altura em que o número de desempregados triplicou.
Como afirma o perito da ONU: «A austeridade excessiva matou enfermeiros e médicos antes de cuidar dos doentes» («the excessive austerity in the public health care sector literally killed first nurse and doctor before treating the patient»)
Apenas o item relativo aos assuntos económicos subiu: isto devido ao resgate dos bancos. Tratou-se de um aumento de 116 %. Note-se que a maior parte dos fundos atribuídos pela Troika para resgate dos bancos não passou pelo orçamento de Estado e, portanto, não aparece na tabela. Se todo o dinheiro público atribuído na Grécia ao resgate dos bancos franceses, alemão, gregos … fosse incluído no orçamento grego, o aumento seria muito superior. Por outro lado, esses montantes fizeram aumentar em larga escala a dívida pública grega. No entanto, é ao povo grego que essa dívida é reivindicada.
A seguinte tabela vem dramaticamente reforçar as conclusões do relatório de auditoria sobre a dívida grega.
Tabela 1: Despesas do governo central, Grécia 2009-2013
Despesas do governo central em mil milhões de euros | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | Evolução 2009-2013 |
Despesa total em mil milhões € | 128,15 | 117,77 | 111,63 | 104,49 | 108,01 | -15.7% |
Serviços públicos | 28,36 | 27,59 | 26,67 | 20,80 | 17,64 | -37.8% |
Proteção social | 44,47 | 42,90 | 42,42 | 39,80 | 34,99 | -21.3% |
Velhice | 30,79 | 30,51 | 30,21 | 29,73 | 26,27 | -14.7% |
Doença e incapacidade | 3,97 | 3,92 | 3,68 | 3,43 | 2,68 | -32.6% |
Sobrevivência | 3,64 | 3,36 | 3,38 | 3,39 | 2,75 | -24.5% |
Família e infância | 2,34 | 2,36 | 1,38 | 1,18 | 1,20 | -48.7% |
Desemprego | 2,37 | 2,26 | 3,24 | 1,84 | 1,67 | -29.8% |
Habitação | 0,81 | 0,14 | 0,20 | 0,04 | 0,20 | -74.4% |
Exclusão social | 0,19 | 0,08 | 0,16 | 0,07 | 0,03 | -81.0% |
Assuntos económicos | 12,73 | 9,80 | 8,39 | 12,98 | 27,53 | 116.2% |
Saúde | 16,09 | 15,39 | 13,31 | 11,08 | 9,25 | -42.5% |
Serviços hospitalares | 9,69 | 9,30 | 7,48 | 6,72 | 5,64 | -41.8% |
Medicamentos e equipamento médico | 5,23 | 5,06 | 4,71 | 3,68 | 2,66 | -49.2% |
Serviços extra-hospitalares | 0,77 | 0,74 | 0,80 | 0,45 | 0,74 | -3.9% |
Educação | 9,63 | 9,00 | 9,16 | 8,60 | 8,18 | -15.0% |
Ensino pré-primário e primário | 3,02 | 2,79 | 2,88 | 2,67 | 2,50 | -17.3% |
Ensino secundário | 3,65 | 3,34 | 3,28 | 2,94 | 2,61 | -28.6% |
Ensino superior | 2,12 | 1,94 | 1,89 | 1,85 | 1,63 | -23.3% |
Defesa | 8,16 | 5,77 | 4,96 | 4,6 | 3,89 | -52.5% |
Ordem pública e segurança | 4,23 | 4,03 | 3,58 | 3,54 | 3,36 | -20.8% |
Lazer, cultura e religião | 1,56 | 1,25 | 1,28 | 1,26 | 1,18 | -24.4% |
Alojamento e serviços comunitários | 0,88 | 0,44 | 0,38 | 0,42 | 0,51 | -41.9% |
Fonte: Eurostat, General Government expenditure by function (COFOG) (gov_10a_exp).
Na segunda metade do relatório, a partir da página 11, a atenção do perito independente volta-se para o 3º memorando imposto à Grécia após a capitulação do governo de A. Tsipras em julho de 2015. Um ponto fundamental do terceiro memorando é a redução das despesas de segurança social num montante equivalente a 1,5 % do PIB ao ano!
Na página 13, o perito resume a opinião expressa pela Comissão para a verdade sobre a dívida grega, criada pela Presidente do Parlamento grego em Abril de 2015 (ver: http://cadtm.org/Analyse-de-la-lega… e http://cadtm.org/Le-troisieme-memor…) e dissolvida pelo novo presidente do parlamento em novembro de 2015 (ver: http://cadtm.org/Carta-aberta-ao-pr…). O perito felicita a criação da comissão e considera que a auditoria deve prosseguir.
O perito independente faz saber que, desde o início da crise, 230.000 pequenas e médias empresas (PME) fecharam, causando a perda de 600.000 postos de trabalho. Acrescenta que o programa de ajustamento imposto à Grécia levou à supressão de 234.847 postos de trabalho na função pública entre 2009 e finais de novembro de 2015, uma redução de 26 %. Globalmente, no país, um milhão de postos de trabalho foi suprimido (ver página 15 do relatório).
O perito da ONU considera que manter a redução do salário mínimo viola o artigo 7 a ii do Pacto Internacional sobre Direitos Culturais, Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Acrescentou que apenas 10 % dos desempregados recebem subsídios de desemprego. Em 2014, estima-se que 2,4 milhões de pessoas viviam abaixo do limiar de pobreza com um rendimento diário inferior a 12 euros por dia por trabalhador ou inferior a 6,6 euros por pessoa numa família de 4 pessoas (2 adultos e 2 crianças).
Na página 18 (ponto 75), o relator salienta que as instituições credoras desprezam a obrigação de realizar um estudo preliminar sobre o impacto humano das medidas que impõem à Grécia. Em sua opinião, os direitos económicos e sociais foram violados em larga escala («Social and economic rights have been denied in a widespread manner», ponto 76). No ponto 77, o relator da ONU explica que a redução dramática do respeito pelos direitos humanos fundamentais sofrida pelos gregos não é devida à «mão invisível», é claramente resultado das políticas implementadas no país. O relator lembra no ponto 81 que a sua análise confirma a análise realizada pelo seu antecessor Cephas Lumina em 2013-2014 (ver A/HRC/25/50/Add.1). Note-se que Cephas Lumina é membro da Comissão para a verdade sobre a dívida grega (ver a sua intervenção em Bruxelas a 1 de Março de 2016: http://cadtm.org/Video-Cephas-Lumin…). No ponto 84, o relator recomenda o adiamento das novas medidas de austeridade em matéria de segurança social. No parágrafo 91, pede que sejam concedidos a todos os desempregados subsídios de desemprego durante 24 meses. No ponto 98, recomenda que as autoridades gregas prossigam o trabalho iniciado pela Comissão para a verdade sobre a dívida grega. No ponto 101, o relator pede aos credores para reduzirem a dívida grega.
O relatório do perito é escrito em termos diplomáticos. O documento contém passagens muito moderadas, que podem desagradar a todos aqueles e aquelas que estão a justo título indignados com o comportamento dos credores e das autoridades gregas. No entanto, este é um relatório que deve ser usado porque, como mencionado acima, contém argumentos poderosos, que podem ser postos ao serviço da luta contra as políticas neoliberais e contra a dívida ilegítima.
Artigo publicado no site do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo. Tradução: Maria da Liberdade. Revisão: Rui Viana Pereira.